O Plano de Recuperação e Resiliência, a Cultura e a falta de estratégia.
A carta aberta da cultura a António Costa (Jornal Público, 18/2/2021) da qual foram
também subscritoras as três associações que assinam este documento, foi motivada pela
ausência de estratégia e de propostas concretas para a Cultura e as Artes no Plano de
Recuperação e Resiliência (PRR).
Na sua resposta ao alerta que fazíamos e à exigência da inclusão de um plano para a
Cultura, o primeiro-ministro convidou a sociedade civil a pronunciar-se e a enviar contributos ao
PRR através da consulta pública. Não obstante a importância que damos a este mecanismo de
participação política e cívica, consideramos que não se pode legitimamente esperar que seja
apenas a sociedade civil a estruturar e redigir a criação de um plano de políticas públicas a
médio e longo prazo. Muito menos se pode esperar que o faça com seriedade quando o prazo
para esta consulta pública são apenas duas semanas.
Durante os últimos anos, temos tido oportunidade de fazer chegar ao Governo, ao
Ministério da Cultura, à Comissão de Cultura da Assembleia da República e aos grupos
parlamentares propostas concretas sobre o que deveriam ser as políticas culturais para o país;
temos estado sempre disponíveis para reunir, dialogar e trabalhar em conjunto com a tutela no
que respeita ao pensamento estrutural da cultura e das artes em Portugal.
Foi, por isso, surpreendente para nós que o PRR não considerasse a Cultura como um
dos eixos basilares da recuperação e resiliência, que não refletisse aquilo que tem sido o
trabalho e as propostas desenvolvidas pelas associações do setor e, sobretudo, que não
contivesse qualquer plano a partir do qual nos pudéssemos pronunciar.
A Cultura foi um dos setores mais afetados pela pandemia. Não só já o reconheceram e
afirmaram as lideranças políticas do país como o prova o estudo “Reconstruir a Europa: a
economia cultural e criativa antes e depois da covid-19” 1 , cujos resultados foram apresentados
no fim de janeiro em Bruxelas, apontando o maior impacto para as artes performativas, em
particular, com uma quebra de 90% no volume de negócios, que foi mais forte do que em outros
setores como o do turismo. Ao ler-se o resultado deste estudo fica claro que Cultura deveria ser
um eixo estratégico basilar para a recuperação. Se não, vejamos: segundo o estudo, na Europa,
as áreas culturais e criativas empregam mais do dobro de trabalhadores do que as indústrias
automóvel e das telecomunicações juntas e, antes da pandemia, cresciam a um ritmo mais
acelerado do que a média dos restantes setores; o setor cultural foi também um dos principais
promotores de emprego e foi um setor que “sobressaiu de forma positiva no que respeita à
inovação tecnológica, diversidade de género e promoção de emprego para os jovens”. O estudo
conclui ainda que "o setor criativo deve estar no centro dos esforços de recuperação da
Europa" 2 , atendendo àquilo que é a "contribuição fundamental das Indústrias Culturais e
1
“https://www.rtp.pt/noticias/economia/cultura-e-das-areas-mais-prosperas-na-economia-da-ue-e-pode-ser… ”
2
https://www.rtp.pt/noticias/economia/cultura-e-das-areas-mais-prosperas-na-economia-da-ue-e-pode-ser-solucaopara-
crise-estudo_n1292679
Criativas (ICC) para a economia em geral e o seu potencial para ajudar a UE a sair da crise".
Não será por acaso que, aquando da apresentação dos resultados, se considerou que 2%
dos fundos do plano de recuperação europeu deveriam ser investidos na cultura.
A produção cultural não só é um dos setores mais dinâmicos, que mais emprega, e como
tal, com mais peso na economia europeia, como é também uma alavanca para a melhoria das
qualificações da população, promovendo o pensamento e o conhecimento, fundamentais para a
democratização, para o desenvolvimento e para a melhoria da qualidade de vida da sociedade.
Assim, este PRR falha no seu compromisso com a recuperação económica ao ignorar um
dos setores mais afetados pela crise, bem como todas as pessoas que dele dependem e que
ficaram tão fragilizadas; e falha também no seu compromisso com a resiliência por não ser
capaz de ver a aposta na cultura como uma aposta nas pessoas e no desenvolvimento
democrático.
Este PRR deveria, por isso, ter planos e medidas específicas para a Cultura e, dentro das
grandes linhas definidas ― transições climáticas e digitais―, oferecer ao setor cultural as
mesmas oportunidades que são dadas a outros setores, de forma a que lhe seja permitido criar
valências e contribuir para o seu desenvolvimento, considerando que um dos seus âmbitos de
atuação é a criação de hábitos culturais, a promoção de relações estéticas e analíticas que
permitem o desenvolvimento de uma sociedade mais culta e, como tal, mais crítica.
Queremos um Plano de Recuperação e Resiliência em que a Cultura não seja uma
palavra de adorno, nem silenciada pela sua transversalidade, mas que, pelo contrário, seja
promotora de desenvolvimento e de emprego, que gere valor.
Gostaríamos de deixar aqui algumas sugestões de medidas para a Cultura, que achamos
que podiam constar do PRR, a mero título de exemplo e como ponto de partida para uma
discussão que gostaríamos de ver mais aprofundada e para a qual estamos sempre disponíveis:
Criação de emprego e reforço dos vínculos laborais, combate à precariedade e aos falsos
recibos verdes.
Deve ser considerada – tal como foi demonstrada pela situação pandémica – a
fragilidade do setor profissional das artes e da cultura. Uma forma de combate a esta situação
passa necessariamente pelo reforço do financiamento público ao setor cultural, de forma a que
os projetos artísticos e culturais possam criar mais vínculos laborais estáveis para mais
profissionais do setor, combater a prática dos falsos recibos verdes em instituições públicas e
privadas, e consequentemente, melhorar a proteção laboral e social dos trabalhadores. Este
investimento faria, aliás, todo o sentido em articulação com a proposta de criação do Estatuto
dos Profissionais da Área da Cultura que está, neste momento, a ser desenvolvida pelo Governo.
Investimento no Plano Nacional das Artes (PNA) e as STEAM
O PNA é um plano já existente, bem estruturado e cujo impacto é fundamental para a
população e para o país, trabalhando na aproximação da comunidade escolar de todo o
território às Artes, combatendo assimetrias sociais e territoriais, capacitando, promovendo o
pensamento e o sentido crítico. Contudo, é um plano sem dotação financeira para poder ser
cumprido. Infelizmente, não se encontra uma única referência ao mesmo neste PRR.
Por outro lado, são referidas as metodologias STEAM, referência também feita pelo
primeiro-ministro na sua carta de resposta, como um dos pontos em que a Cultura poderia ter
um papel transversal. Assumindo que é importante que estas metodologias estejam incluídas
neste PRR e que este considera a inclusão das artes dentro do próprio sistema de educação, não
entendemos porque é que o mesmo faz uma distinção clara entre STEAM para a educação não
universitária e STEM (que não inclui Artes) quando fala do ensino superior.
Investimento na digitalização e transição climática
Em contexto de crise climática, a produção, criação, circulação e difusão das obras terão
de ser repensadas, e por isso será fundamental não limitar o acesso a fundos para estes efeitos
às PME’s, devendo estes ser abertos a todo o tipo de organizações. Deste modo, capacitam-se
os agentes culturais, para a renovação e modernização da infraestrutura cultural (edifícios,
equipamentos, veículos, materiais e formação) quer em relação a outros setores, quer em
comparação com os seus pares europeus, garantindo a continuidade das atividades, das
organizações e a manutenção do emprego.
Estas linhas de financiamento seriam fundamentais, nomeadamente para o arranque da
Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses. A preocupação com a sustentabilidade e a transição
climática há muito que toma conta das agendas do setor cultural. Foram estas mesmas
estruturas que sugeriram também em consulta pública do DL 661/ XXII/2020 que a Rede de
Teatros e Cineteatros tivesse em atenção a questão da sustentabilidade.
Projetos europeus e internacionalização da cultura portuguesa
A internacionalização das artes e da cultura portuguesa, bem como o trabalho em rede,
devem fazer parte de uma estratégia integrada, nomeadamente com o apoio de interlocutores
já existentes. Uma das propostas poderá passar por capacitar, com equipas, com financiamento
e estratégia, instituições como o Instituto Camões, enquanto principal impulsionador na
internacionalização das artes e cultura portuguesa e do intercâmbio cultural com países
estratégicos, à semelhança do trabalho que desenvolvem instituições como o Instituto
Cervantes, o Institut Français ou o Goethe Institut, citando apenas alguns exemplos.
A importância da cultura no combate às desigualdades territoriais
Sendo objetivos do PRR a coesão territorial e o equilíbrio demográfico, é importante
considerar a importância da criação e manutenção de hábitos culturais que permitam a ligação
das pessoas ao seu território. A promoção da arte e da cultura pode ser fator de inclusão e
diminuição de desigualdade. Neste sentido, é necessário criar sistemas que facilitem a fixação
de projetos artísticos e culturais fora dos grandes centros urbanos.
O Governo deve dar acesso a linhas de financiamento – tais como as que estão previstas
no PRR – a entidades culturais e artísticas que funcionam profissionalmente, permitindo-lhes
criar uma sustentabilidade própria e desenvolver a capacidade crítica e o gosto pela fruição
cultural das diferentes populações, através das suas propostas e estratégias artísticas bem
definidas. Realça-se que muitas das estruturas que desenvolvem projetos culturais e artísticos
não são empresas, e por isso é preciso considerar em todo o tipo de apoios (fundos dos quadros
comunitários e nacionais de apoio ao desenvolvimento económico regional, bem como naquelas
previstos neste PRR) outras figuras jurídicas como sejam as entidades sem fins lucrativos.
A resiliência é um marco importante deste PRR, no âmbito dos investimentos previstos
para as respostas aos desafios estruturais.
Malgrado a falta de uma estratégia clara e estruturante para a Cultura pós COVID,
deveria pensar-se na necessidade de promover a acessibilidade à cultura e de premiar a
capacidade de resistência deste setor.
A implementação de medidas que permitam o alargamento do acesso a práticas
artísticas tem várias vertentes positivas, desde logo levar as pessoas a ter uma participação
cultural mais ativa, desenvolvendo pensamento e consciência crítica, permitindo também o
crescimento e melhoramento do setor, dinamizando ainda a economia associada à prática
cultural.
Há-que considerar o significado primeiro da palavra resiliência - a capacidade de um
corpo recuperar a sua forma inicial depois de sofrer um choque ou deformação. O que obriga a
que nos perguntemos antes de tudo o mais - a que forma pretendemos voltar depois do choque
COVID? Qual a forma da Cultura que queremos para Portugal depois de termos conseguido
recuperar da pandemia? Esta é uma questão que não é respondida no PRR, nem sequer é
formulada.
Performart - Associação para as Artes Performativas em Portugal
Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénicas
REDE - Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea
1 de Março de 2021